A venda de Hulk ou a queda de um mito
Seja como diz o FC Porto (vai receber 40M€ por 85% dos direitos económicos), seja como diz o Zenit (paga 40M€ pela totalidade da operação), há uma conclusão que se pode tirar neste negócio entre os campeões nacionais de Portugal e da Rússia: a elevadíssima cláusula de rescisão do contrato de Hulk, de 100M€, absolutamente desenquadrada da realidade que caracteriza actualmente o mercado futebolístico à escala global, uma forma de proteger, em tese, os interesses do FC Porto, não serviu para quase nada. Serviu apenas para criar a ilusão, durante algumas épocas, que o FC Porto iria conseguir fazer, na senda do que aconteceu nas últimas temporadas com um lote considerável de ’activos’, ‘o negócio dos negócios’. Isso, como é óbvio e se tornou cada vez mais previsível à medida que o tempo foi passando, não aconteceu.
Fala-se agora da natureza e da qualidade do respectivo negócio e, como sempre, há opiniões para tudo. Há quem veja o assunto valorizando o que Hulk custou, o que Hulk proporcionou em termos de rentabilidade desportiva e a mais valia conseguida nesta venda. Há quem veja o assunto apenas pelo lado do valor da cláusula de rescisão. É preciso olhar, contudo, para todas as variáveis e, com elas, perceber que o FC Porto gerou uma expectativa com este negócio que não foi cumprida, sobretudo se se considerar outros negócios, que colocaram o clube presidido por Pinto da Costa na crista da onda, em matéria de ‘encaixes’ com transferências.
Grande negócio foi, por exemplo, a venda ao Chelsea, há 8 anos, do lateral direito Paulo Ferreira, por 20M€. Ou de Ricardo Carvalho, ao mesmo Chelsea, em 2007, por 30M€. Ou ainda de Bosingwa por 20,5€, novamente ao clube londrino, também em 2007 ou os 30M€ de Pepe ao Real Madrid, nesse ano mágico de 2007, que atirou, definitivamente, o empresário Jorge Mendes para a dimensão máxima, no âmbito do ‘negócio-futebol’.
O FC Porto-campeão-da-Europa-em-2004 marcou uma nova era em termos da expansão da ‘marca Portugal’ no futebol europeu (com José Mourinho, Jorge Mendes e os jogadores que deram corpo ao sucesso do clube português na esfera internacional, anteriormente protagonista de outros êxitos, na crista da onda) e esse ano correspondeu, também, ao começo da afirmação de Cristiano Ronaldo como ‘jogador de elite’, o que acabaria por criar novos impactos na indústria do futebol. Temos, pois, um ‘eixo-Portugal’ na lógica do mercado futebolístico.
Há que contar, obviamente, com a crise económica global, com os excessos cometidos no passado e com a ameaça do ‘fair play financeiro’, que obrigaram as sociedades anónimas a mais cautelas no momento da efectivação das compras. Basta olhar quem fez mexer o mercado nos últimos tempos: o dinheiro árabe [PSG] ou o dinheiro russo da exploração de gás natural; há excepção mas ainda e sempre o dinheiro dos magnatas e não o dinheiro gerado pelas receitas do futebol propriamente ditas.
O dinheiro dos direitos televisivos, que é muito e o dinheiro resultante da venda de bilhetes e lugares anuais, mais publicidade e merchandising, não chega para tudo. Essa é uma questão que os responsáveis do futebol, mais tarde ou mais cedo, vão ter de equacionar, porque já há demasiadas variáveis a criar condições de ausência de equidade competitiva, porque não é justo nem saudável nem correcto colocar equipas de tostões a competir com equipas de milhões...
É público que o FC Porto conseguiu encaixar cerca de 450 milhões de euros, com as suas melhores 20 transferências (para além disso, só o FC Porto conseguiria encaixar cerca de 10 milhões de euros, em 2003 (!), pela venda de Postiga ao Tottenham!). Isso contribuiu, e muito justamente, para afectar positivamente à imagem do clube do Dragão uma aura de intocável capacidade de negociação. Agora que os contornos da transferência de Hulk estão a ser discutidos na praça pública (o que vai fazer a CMVM perante declarações não coincidentes produzidas pelas partes interessadas?!...) e sobretudo perante a inevitável decepção em torno dos números, muito distantes dos 100 milhões, talvez estejamos perante a queda de um mito: com efeito, o FC Porto, ao longo dos tempos, vendeu muito e bem.
A verdade é que, não obstante essas vendas e o produto das receitas de qualificações sucessivas para a Champions, o passivo anda na ordem dos 200 milhões de euros. Nestas condições, podemos falar em boa gestão? Afinal a ‘boa gestão’, que vem sendo dada como um dado adquirido na opinião publicada, não será apenas um ‘módulo de propaganda’ e dar como certo algo que não está plasmado nas contas? Não teria o FC Porto a obrigação, num quadro de encaixes tão significativos, e com esta capacidade de realizar transferências de indiscutível impacto financeiro, de apresentar contas equilibradas? Com tantas receitas, não estará o FC Porto a gastar mais do que pode? Sem oposição externa e interna, este é um assunto condenado a não dar discussão.
(Rui Santos escreve de acordo com a grafia do português pré-acordo ortográfico)